Nada acontece por acaso. Tudo tem um começo, um porquê, uma história. Esta caminhada de SMP não caiu do céu; não nasceu da noite para o dia. Nasceu no “jardim das CEBs” (Comunidades Eclesiais de Base), como canta Pureza, animador de CEBs e missionário fiel destas SMP, desde o começo.
Como já falamos, tudo começou em 1989, entre alguns agentes pastorais e animadores de comunidades, durante um curso de liderança, no Instituto de Pastoral Regional(IPAR), em Belém do Pará. Nossas comunidades estavam desanimadas e cansadas. Queríamos planejar algo que ajudasse a sair do atoleiro. E assim, pela primeira vez, surgiu aintuição de realizar Santas Missões nas comunidades. Após uma primeira reação parecida a ‘gargalhada’, seguiu uma conversa interessante. Os participantes resolveram levar a proposta nas próprias comunidades. O interesse cresceu. Mais gente entrou no assunto. Marcamos dois encontros extra para tirar algumas conclusões.
Enfim, resolvemos fazer uma experiência, com novos conteúdos e nova metodologia. Somente depois iríamos fazer uma avaliação se valia a pena continuar ou não. Alguns pontos importantes ficaram logo claros: os(as) missionários(as) deviam vir do meio do povo, cheios de ternura solidária e de coragem profética. Queríamos Missões mais perto dos anseios e das preocupações do povo, mais existenciais, mais carregadas de profunda experiência de Deus, mais participativas. Deviam estar comprometidas com a transformação da sociedade, das pessoas. Entre uma e outra conversa definiu-se o nome: chamar-se-iam SANTAS MISSÕES POPULARES.
Corria o ano de 1990. Uma pequena equipe ficou encarregada de arrumar e viabilizar a proposta. Preparamos uma apostila de treze páginas; era tudo o que nós podíamos imaginar de bom e melhor. Precisávamos de uma paróquia onde realizar a proposta. Não foi fácil. Chegavam aos nossos ouvidos murmurações: “Não é da conta de vocês, já tem Congregações religiosas missionárias que cuidam disso... Também vocês agora vão largar as comunidades? Não dá para combinar CEBs e SMP”.
Graças a Deus, os dois padres -Hilário e Pedro – que estavam, na época, à frente da paróquia de Xinguara, sul do Pará, diocese de Conceição do Araguaia, nos convidaram a realizar esse novo jeito de SMP, com o apoio irrestrito do bispo local, dom José Patrick, de saudosa e grata memória. Era uma região sofrida e violentada pela ganânciado latifúndio selvagem. As comunidades da paróquia se animaram, marcaram a data da grande Semana Missionária: novembro de 1991.
Não queríamos chegar lá despreparados. Festa bonita não se improvisa. Fizemos uma programação a partir do início de 1991. Lançamos a primeira carta-circular com a boa notícia. Pessoas amigas e interessadas aderiram. No mês de abril, sete meses antes da Semana Missionária, organizamos em Xinguara um primeiro retiro aberto a pessoas desejosas de ser missionárias. Após uma intensa e bonita vigília de oração, mais de cem pessoas se comprometeram. Juntos, escolhemos os grandes rumos das SMP. Era tudo novo para nós e queríamos envolver os missionários nas decisões. Queríamos que todos se sentissem sujeitos corresponsáveis do processo e não simples executores de tarefas. Sem perceber, estávamos iniciando uma extraordinária experiência participativa. A animação e a expectativa foram crescendo.
Após uma bela e longa preparação, chegou o tempo da grande semana missionária: novembro de 1991. Cinquenta missionários (as), vindos de vários lugares, dirigiram-se a Xinguara. Juntaram-se aos mais de cem missionários locais. Nos organizamos em pequenas equipes, aprofundamos os conteúdos e o estilo da semana missionária e, após uma preparação intensa e a Missa de envio, presidida pelo bispo dom José, partimos para a missão. A Semana Missionária surpreendeu. O povo gostou; algo inesquecível. A avaliação foi altamente positiva. Os missionários decidiram continuar. E nunca mais paramos.
Logo, recebemos convite da paróquia de Juruti, à beira do rio Amazonas, já perto da fronteira com o Estado de Amazonas, para realizar SMP em 1992. Também lá as SMP foram um sucesso. Em 1993, sempre a pedido, realizamos SMP em duas áreas da Transamazônica. Uma área era Anapu, onde atuava a inesquecível irmã Dorothy, sempre presente nas SMP, mártir da missão e da floresta amazônica, covardemente assassinada em fevereiro de 2005. Também aí não faltaram surpresas agradáveis. Ainda em 1993, solicitados, realizamos SMP em Ananindeua (PA), periferia de Belém. Uma bênção.
E assim a boa notícia das SMP espalhou-se de maneira impressionante em várias partes do Brasil. Recebíamos convites sem parar. Em 1996, cinco anos depois do início das SMP, publicamos a primeira edição do manual das SMP, enriquecido pelas várias experiências acumuladas. Estava na hora de transformar a proposta em algo mais sólido e permanente e sempre atenta às novidades. A CNBB elaborou para os anos 1997-2000 o “Projeto Rumo ao Novo Milênio”,onde incluiu, como sugestão, a experiência das SMP, tornando-a, assim, mais conhecidas. A partir de 1997 recebemos convites de dioceses pedindo SMP em todo o território diocesano. Um desafio não pequeno para nós. Conseguimos criar uma metodologia participativa, envolvendo todas as forças vivas da diocese. Incrível a acolhida.
Em 2007 aconteceu a assembleia dos Episcopados da América Latina em Aparecida (SP). As palavras que mais marcaram a assembleia foram: missão e discípulos missionários de Jesus de Nazaré. A assembleia convidava todas as forças vivas da Igreja Latino-americana a serem discípulos missionários de Jesus Cristo. Algum bispo lembrou na assembleia esse novo jeito de SMP que estávamos vivenciando. Meses depois, no mesmo ano, recebemos convite para partilhar nossa experiencia missionária no Instituto de Teologia Pastoral para a América Latina, com sede em Bogotá,Colômbia (ITEPAL, agora CEBITEPAL).
O mesmo convite recebemos em 2008. Nesse mesmo ano, a Conferência Episcopal da América Latina (CELAM)lançou a Missão Continental com a finalidade de pôr em prática as luzes e orientações de Aparecida em todos os cantos do Continente. As SMP foram convidadas a colaborar num encontro de bispos latino-americanos reunidos em Panamá, outubro 2008. Sobre ‘Missão Continental e SMP’.
Participaram 30 bispos, de alguns países. No mês seguinte, novembro 2008, recebemos convite da Conferência Episcopal do Centro América para partilhar a proposta das SMP em sua assembleia, acontecida em San Salvador (El Salvador).Em todos esses encontros houve recepção bem positiva.
Mas, sem dúvida, a proposta mais interessante que apareceu foi a de três bispos da Guatemala, presentes nos encontros. Solicitaram a nossa presença para partilhar esse novo jeito de SMP em algumas dioceses da Guatemala, em 2009. O resultado mais surpreendente foi a decisão de seis dioceses e uma prelatura, todas na mesma região, de viver juntas o processo intensivo das SMP. Durou seis anos (2010-2015). As boas notícias que aconteceram foram muitas e altamente significativas.
A caminhada das SMP não parou. Dezenas de milhares de pessoas experimentaram a alegria e a beleza do chamado missionário. Ao longo desses anos, cerca de 500 mil pessoas passaram pelo processo formativo de discípulos missionários. Quando eles encontram apoio, muitos continuam firmes na missão. Ser missionário é o novo ministério que irrompeu na vida da Igreja; novo pela novidade que hoje representa, mas tão antigo que chega às origens do
cristianismo.
Comunidades cansadas reanimaram, tantas outras surgiram. Cresceu o gosto pelo Evangelho, pelo seguimento de Jesus de Nazaré. Muitas pessoas começaram dedicar tempo e energia para construir vida e cidadania para todos.Falhas e dificuldades não faltaram e continuam presentes,mas os fatos dizem que as SMP não são “fogo de palha”.Elas cresceram em conteúdo, espiritualidade e metodologia, graças à contribuição valiosa de tantos missionários(as).Ficamos felizes e animados ao ver confirmados os anseios e objetivos das SMP no Documento de Aparecida, no magistério e testemunho de Papa Francisco. No dizer de muitos participantes, essas SMP respondem aos anseios da humanidade de hoje, são profundamente existenciais, buscam viver a opção pelos últimos, pelos descartados, ao estilo de jesus de Nazaré.
Mas, como já falamos na introdução desse livro, nem tudo está 100%. Apareceram falhas, que continuam ameaçando seriamente a caminhada das SMP. Muitos reduziram nas a um evento que passou. Não houve suficiente fidelidade à inspiração principal, que é a Santa Missão Popular vivida por Jesus de Nazaré. Tantos missionários caíram na rotina. Pedras e espinhos tentaram sufocar a boa semente. A pandemia debilitou sonhos e projetos. Mesmo assim, sonho missionário não apagou. Um bom grupo de missionários aprofundou mais, ‘ruminou’, partilhou; saíram novas e belas intuições. Colocamos tudo isso em três livros publicados durante a pandemia. Estamos vislumbrando algo bonito para a pós-pandemia. Entendemos melhor o alerta de Papa Francisco: “Não se trata de voltar à normalidade porque ela já estava doente de injustiças, de desigualdades, de degradação ambiental. A normalidade verdadeira é a do Reino de Deus, onde os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciado o Evangelho” (Mt 11, 5). (Audiência geral 07/10/2020).
Nas páginas que seguem, desejamos partilhar nos detalhes esta rica experiência, que já adquiriu firmeza consolidada, mas sem deixar de viver em ritmo de conversão e crescimento permanente. As SMP não podem morrer.
Antes de prosseguir, queremos reavivar, com imensa gratidão, a memória de tantos (as) missionários (as) das SMP, falecidos e ressuscitados. Eles muito ajudaram no avanço da proposta. Em nome de todos e de todas registramos a memória da irmã Dorothy Stang, humilde e corajosa guerreira da missão nas florestas da Amazônia; e de Manoel Martins de Almeida, o querido Manelão. Eles deram uma grande contribuição para que as SMP vingassem e crescessem. Dorothy caiu na floresta amazônica, em 12 de fevereiro 2005, vítima de balas assassinas, disparadas pela ganância destruidora da floresta amazônica. Manelão, pequeno e magro no corpo, mas grande nos sentimentos e no ardor missionário (nesse sentido, o apelido lhe cabe muito bem), viveu a vida em missão permanente, no meio e a serviço do povo simples e pobre das comunidades. Inúmeras vezes cantou um belo canto de sua autoria, um verdadeiro retrato de sua vida: “Me corre nas veias as dores da humanidade, mas brilha em meu peito a estrela da liberdade. Levanta, meu povo, Jesus é o Senhor da história; meu canto é reflexo do sol dessa nova aurora”. Manelão morreu de enfarte fulminante nos braços de sua querida esposa Marlene, à beira do Rio Araguaia, do qual ele tanto gostava. Era o dia 10 de dezembro de 2011. A Diretoria da Organização religiosa Santas Missões Populares (OSMP) escolheu o dia 10 de dezembro como dia da memória de todos os missionários já falecidos, que entregaram suas vidas pela causa da Missão de Jesus de Nazaré, através das Santas Missões Populares. Que a memória deles e delas esteja sempre presente em nossa vida, transformando-nos em “peregrinos e romeiros rumo à pátria definitiva” (cf. 1Pd 1,17).
Realmente, a missão enche de paz e de alegria interior:“Onde há povo, há missão. Onde há missão, há mil razões para ser feliz”, dizia Dom Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana (MG), discípulo missionário de Jesus, sábio conselheiro, pastor, profeta, patrimônio precioso do Brasil e da Igreja, falecido em 2006.
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